Meu Caminho em terras de Espanha.
Para os que já ouviram
falar do Caminho de Santiago de Compostela na Espanha, as lendas e tradições
quanto a aparição do santo, são conhecidas. Mas, faço um resumo: logo após a
morte e ressureição de Jesus Cristo, o Santo (Tiago o maior) teria partido para
evangelizar em Hispania (Galícia). Sem muito sucesso, teria retornado a
Jerusalém, onde foi aprisionado e condenado à morte por ordem de Herodes
Agripa. Em seguida seus discípulos teriam levado o seu corpo ao Porto de Jaffa,
onde o embarcam e transladam, por mar, a cidade de Iria Flavia em Galícia
romana, em sete dias por sete discípulos, contam algumas tradições. Ali se
apresentam a rainha Lupa que os conduz ao legado romano de Dugio (Duio), que os
prende como fugitivos de Roma. São liberados por um anjo, fogem e são
protegidos de seus perseguidores pelo afundamento de uma ponte; vencem um
dragão e amansam uns touros bravos com a força de um sinal da cruz, os touros amansados
acabam conduzindo o corpo santo até seu lugar de sepultamento. Ante tais fatos,
a rainha Lupa se converte e doa o lugar da sepultura do corpo do apóstolo, um
lugar chamado Lebredón. No ano de 813, o eremita Pelayo (Paio) teria visto umas
luzes num bosque (Lebredón) e comunica ao bispo Teodomiro quem, depois de
jejuar e orar descobriu o sepulcro que afirmou ser de Santiago, fato que foi
confirmado pelo Rei Afonso II. No local se construiu em 834 um pequeno templo.
Assim, acredita-se que a
origem do caminho de Santiago é o descobrimento do sepulcro Jacobeu, na alta
idade média, em terras da Galícia, no primeiro terço do século IX. Tal caminho
foi declarado “Primeiro Itinerário Cultural Europeu”, pelo Conselho da Europa
em 23/10/1987. A UNESCO o declarou Patrimônio da Humanidade em 1994.
Em 29 de abril de 2017,
iniciei meu caminho, em Saint Jean Pied de Port (França) até a cidade de
Santiago de Compostela (Espanha). O que me levou a caminhar por 32 dias, para
chegar a cidade de Santiago de Compostela? Teria sido curiosidade de ver o
sepulcro do apóstolo? Alguma religiosidade inconsciente? Simples Caminhar?
Encontrar pessoas? O que buscava? O que nos move a sair de casa e realizar tal
caminho? Um caminho que é europeu.
No caminho, encontramos
muitas pessoas, aliás estatísticas dão conta que no mês de maio eram quase
trinta e cinco mil peregrinos (dados da Oficina do Peregrino em Santiago),
portanto a promessa de que o caminho é um trajeto solitário, não é mais verdade,
está repleto de peregrinos. As perguntas correntes entre os peregrinos, sempre
se referem a que país viemos e o que nos levou a percorrer tal caminho. Alguns
afirmavam que o motivo foi o de desenvolver a espiritualidade, o
autoconhecimento, motivos esportivos, doenças própria ou de familiares, fato
que não encontrei ninguém que dissesse que fora pela religiosidade. Aliás,
alguém que tivesse empreendido a viagem por motivo religioso, voltaria
frustrado, pois quase todas as igrejas no caminho estão fechadas (alegam falta
de segurança quanto aos objetos que podem ser roubados), e, algumas celebrações
de missas são realizadas em meia hora, isto quando tem padre no local, sem
muita atenção a quem se deslocou quilômetros para estar ali e que buscava sentir-se
mais confortado espiritualmente.
Ali, deparei-me com
algumas “crendices” que são repetidas por peregrinos que se consideram
especialistas no caminho, e, portanto, com autoridade para dizer o que é certo
ou errado. O primeiro deles é quanto a mochila, sim a mochila. Para alguns o
carregar a mochila com os poucos pertences necessários para realizar o caminho,
além de praticar o desapego, significa que você estaria pagando seus pecados (caminho da expiação). Bom, primeiro, teríamos que
acreditar em pecado, que é dogma da igreja católica. Como no caminho encontrei
vários ateus e adeptos de outras religiões, não sei como tratam o tema. Em
breve visita ao museu do caminho na cidade de Santiago, logo se percebe que
isto é uma falácia. Mochila é objeto que aparece no século XX, assim como os modernos
trajes esportivos. Nos primórdios do caminho, quem se dispunha a realiza-lo, se
levasse algum alimento ou roupas, o fazia no lombo de animais, não nas próprias
costas. Aliás parte do trajeto, podia ser realizado em animais, não só a pé
(hoje pode ser a pé, em bicicleta ou a cavalo). Portanto, é uma decisão pessoal,
carregar ou não a mochila. Pense que a mochila representa um peso sobre seu
físico, que pode causar danos aos joelhos, lombar, facilitar a formação de bolhas
nos pés, portanto é sua a decisão. Entendo que carregar a mochila ou não, nada
tem em relação a se libertar de eventuais pecados. Mas sim, conhecer seus limites
e aceita-los.
Quanto as roupas,
certamente o traje não era tão cômodo como os atuais. Hoje, os peregrinos usam camisetas
e calças de marcas esportivas famosas, como Nike, North Face, botas Salomon,
Timberland. E, pelo que sabemos, o banho não era uma prioridade na idade média,
portanto, ao final do percurso, costumava-se queimar as roupas em razão do
fedor. Desta queima, resta uma tradição de ir até a cidade chamada Finisterre e
queimar as roupas, algo não comum hoje. Alguns pensam que esta queima é para
você se libertar de seu passado e de suas angustias, não sei. Ainda na linha de
tradições, soube que o botafumeiro, um espetáculo que nos encanta hoje durante
a missa na catedral, serviu no passado para que os párocos da catedral de
Santiago, pudessem aguentar o mal cheiro dos peregrinos.
Outro dito, é que para
ser um peregrino perfeito, também devemos nos alojar só em albergues,
preferencialmente os públicos. Caso fiquemos
em outro tipo de alojamento (hostals, pensões, casas rurais, hotéis), não somos
peregrinos verdadeiros, mas sim considerados “turisgrinos”. O que significa
alojar-se em albergues? Entendo como uma forma moderna de autoflagelação, pois
você deverá compartilhar seu espaço e o ar que respira com pessoas
desconhecidas, de hábitos e costumes diferentes dos seus, passar noites
acordadas escutando o ronco de estranhos, além de seus barulhos fisiológicos
fedidos, conversar sobre coisas que talvez não te interessem, nunca ter o
privilégio de ficar só e refletir sobre você mesmo, enfim, respeito os que
querem passar por isto, mas, acredito que temos meios mais confortáveis de
passarmos a noite com um merecido descanso, após horas de caminhada.
No caminho, muitos se
saúdam com o bordão “Buen Camino” (bom caminho) em espanhol mesmo, ao
ultrapassar outro peregrino. Percebi que alguns estrangeiros, não se dignam a
responder, alguns até tiram sarro e afirmam que ao retornarem a seus lares se
alguém lhes disser “buen camiño”, que eles xingariam. Como a grande maioria dos
peregrinos hoje em dia, é de americanos, franceses e alemães, que normalmente
não tem o hábito de estudar outro idioma, (americanos e franceses), costumam
não responder ou responder em seu próprio idioma. Podemos criticá-los? Cadê o
espírito peregrino? Encontramos ainda os
mais jovens, e muitos asiáticos, com seus headfones, ou celulares
ultramodernos, escutando músicas ou mesmo falando ao celular por longos
períodos, preocupados em tirar suas “selfies”, sequer notam onde estão
caminhando, quanto mais responder aos demais peregrinos. Alguns inclusive, escutam
a música em som alto, para que todos os peregrinos que cruzem com eles, sejam
obrigados a ouvir a música que eles gostam. Respeito e educação ao compartilhar
o caminho está ficando raro.
Alguns ao retornarem a
seus países e lares, costumam alardear que o caminho é único, maravilhoso,
mágico. Será? Me parece que a mágica está em cada um de nós. Cada um de nós
encontrará ou não o que foi buscar no caminho. Se encontrar então o caminho é
mágico.
O que é o caminho? É um percurso que apresenta uma variação de
terrenos (plano, subidas, descidas, pedras, lama, bosta de animais, pedras),
além de variação climática (sol, chuva, frio, vento). Nele, não encontramos
fadinhas, anjos, espíritos do bem ou do mau, nada. Pelo menos..., eu não
encontrei! Como na vida, vamos caminhando e desviando dos obstáculos,
resolvendo os problemas e seguimos apreciando a natureza.
Contudo, no caminho escutas
o maravilhoso canto de várias espécies de pássaros (inclusive o cuco); o vento
que bate em sua pele quase conversando com você; o sol que alegra os nossos
dias; a lua e as estrelas que nos fazem sonhar; a terra, onde caminhamos e nos
sentimos seguros. Encontramos os elementos da natureza, que em nosso dia a dia
esquecemos de observar e sentir.
Eu não voltei
especialista no caminho, apesar de ter sido gratificante, caminhei em “estado
de graça”. Considero que foi até milagroso, pois tenho artrose nos dois
joelhos, além de neuroma de norton (inflamação de nervo na planta do pé) no pé
esquerdo. Muitas vezes, precisava parar e tirar a bota para o pé esfriar. Mas,
depois da cidade de León, por milagre, nada doeu mais. Não tive uma bolha nos
pés ou qualquer dano físico. Isto sim, é milagre.
Fiz o caminho da forma
que quis, ou seja, um caminho leve, maduro, consciente. Para isto, me planejei,
estudei o caminho, pois não queria fazer uma trilha, mas sim entender porque
tantos no passado e no presente, reis, plebeus, ricos, pobres, jovens, velhos,
homens, mulheres, saíram de suas zonas de conforto, deixaram suas casas, seus
países e aceitaram o desafio de realizar o caminho, o caminho que nos leva a
Santiago de Compostela. Planejei quantos quilômetros fazer por dia, onde
pernoitar, o que conhecer. Preparei-me fisicamente com treinos diários
(musculação, caminhada), algumas trilhas que envolvessem subidas e descidas,
reforço de treinos de bicicleta, além de perder peso, para que meus joelhos e
pés não sofressem, tudo isto por quase dois anos. Aprendi a meditar com o
método “mindfulness” (permite meditação caminhando). Levei minhas músicas
inspiradoras, como “I will survive” com Gloria Gaynor e “My Way” com Frank
Sinatra.
Considero vitorioso meu
caminho, pois tudo o que desejei, sonhei e planejei aconteceu. Estava no
caminho, presente de corpo e mente, refleti a respeito do passado, presente e
as vezes do futuro. Recordava os familiares (vivos e principalmente dos que já
partiram), de como vivi longe de muitos deles, não por culpa deles ou minha,
simplesmente foi assim; dos amigos que acabaram tornando-se minha família; da
vida que vivi...da luta para ser aceita como mulher que sabe o que quer no
ambiente profissional, dos fracassos, das vitórias, das angústias, de solidão,
dos momentos de choro, de raiva, de alegrias. Buscava prestar atenção nos
detalhes, capturar no corpo e na mente o que estava sentido, e guardar os
cheiros na mente, pois estes não saem nas fotos. Amei cada passo que dei
naquele caminho, nunca questionei o que estava fazendo ali, pois queria e
estava preparada para estar ali, naquele período, naquele mês e com objetivo de
entender meus medos, minha vida até este ponto, neste momento especial de minha
existência. Para isto, decidi que queria estar só a maior parte do tempo, para
meditar, refletir, buscar um autoconhecimento. Agradeci todas as vivências, por sentir-me
feliz, por ter acreditado em mim. Adorei ter o privilégio de fazer do meu
jeito.
“Buen Camiño”
Mirânjela Leite
10/07/2017
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